terça-feira, 26 de maio de 2009

Nós e os cães

Ter um animal, qualquer animal, dá trabalho e despesa, como se sabe. Ter um cãozinho (como esse da foto), como animal de estimação, exige tudo isso e um pouco mais. Essa da foto é a Dorothy, uma poodle de quase dez anos. Ela foi dada à minha filha mais nova, em seu aniversário de seis anos, quando a cadelinha tinha poucos dias de vida. A menina, hoje com quinze anos, continua amando-a, como no dia em que a recebeu. Mas sou eu quem cuida dela.
Quem tem um animalzinho desses não fica - certamente - refletindo sobre ele e muito menos sobre o trabalho que o bicho dá. Os donos de animais - salvo infaustas exceções - acolhem-nos, como se acolhem os filhos: felizes por terem encontrado a quem amar! Mas que esses bichinhos dão trabalho, ah isso dão! Ainda há pouco, essa verdade me veio à mente, quando vi o meu marido arrancando os carrapichos que se prenderam aos pelos e à roupa da Dorothy (sim ela está metida num agasalho porque o tempo está frio e o pêlo dela baixo, por ter sido tosado).
Eu tinha visto que ela estava cheia de carrapichos, pois foi na hora em que eu fui molhar as plantas, que ela - como sempre - se embrenhou no meio delas, à caça dos gatos que se hospedam em nosso quintal. Mas estando eu já um pouco atrasada, para o preparo do almoço, deixei para resolver o problema dos carrapichos num momento mais oportuno.
Nisso, meu marido chegou, almoçou e se apercebeu do aspecto eriçado e "carrapichoso" da cadela, pois ela se deita ao lado dele, na hora dessa refeição. Então ele a pôs no colo e foi tirando as sementinhas e as depositando no assento de um banco, que estava próximo a eles. Eu fui limpar o banco e pude ver a nuvem de pontos pretos, onde se contava mais de cem. Meu marido quase se atrasou, no seu retorno ao trabalho, por conta dessa tarefa; mas deixou a cadela limpa novamente!
No que diz respeito à Dorothy, uma questão, como essa, dos carrapichos, é de somenos importância! Pior são as chantagens emocionais, feitas quando a gente a deixa só (sempre por apenas poucas horas!). Ser deixada só a chateia imensamente! E ela expressa a chateação, geralmente, vomitando em cima do sofá (ou num local difícil de achar!). Nós, naturalmente, não facilitamos mais essa manha e, quando saímos, a tiramos de dentro de casa.
Mas quem realmente se importa com tais coisas, se o contraponto para tudo isso é o recebimento de amor incondicional? Lembrei-me, agora, das palavras de Giuseppe de Lampedusa sobre Bendicò, o cão do príncipe de Salina (o alter-ego do próprio Lampedusa, no romance O Leopardo): "Bendicò era dono de deliciosa estupidez", diz o príncipe. Ele profere essas palavras quando faz o balanço de sua vida, após ter sido acometido por doença incurável. Ele diz então, que, tendo chegado aos setenta e três anos, constata só ter vivido (leia-se: sido feliz) por três anos. E a que ele atribui a felicidade fruída? Aos cães (por grande parte dela!).
Há no livro um trecho que ilustra a "deliciosa estupidez" de Bendicò, o qual transcrevo abaixo (advertindo antes, que o dono e o cão se encontravam no jardim da casa):

"Estava ele ali, inerte, sentado num banco, contemplando a devastação que Bendicò ia fazendo nos canteiros. De vez em quando, o cão levantava os olhos inocentes para ele, como que pedindo um louvor pelo trabalho realizado: catorze cravos despedaçados, meia sebe arrancada, um rego obstruído...
- Chega, Bendicò, venha cá.
O animal acorria e pousava-lhe na mão o focinho sujo de terra, ansioso por mostrar-lhe que a tola interrupção do belo trabalho cumprido lhe havia sido perdoada”.

O amor do príncipe pelos cães era tanto, que em sua avaliação final ele os nomeia individualmente: Fufi, a enorme mops de sua infância; Tom, o impetuoso cão d'água; Svelto, o de olhos mansos; Bendicò (o já descrito "estúpido"); e Pop, aquele que seria o seu último cão (e que o estaria procurando e ansiosamente aguardando, enquanto ele fazia tratamento de saúde em outra cidade).
A literatura é pródiga na citação de animais de estimação, principalmente cães. Isso não me surpreende, uma vez que eu mesma sou amante desses animais. Além das inúmeras menções aos cães, em livros, e da existência de romances em que eles são os personagens principais, há as estórias reais, nas quais eles estão presentes, que de algum modo, chegaram ao conhecimento público.
Lembrei-me, nesse instante, de ter lido uma antiga estória, sobre o magnata norte-americano, da imprensa, James G. Bennett, que nos dá conta da ligação que ele teve com esses animais. Dizia a narrativa que G. Bennet tinha um correspondente do seu jornal em Londres, o qual tencionava destituir do cargo, por não estar muito satisfeito com o trabalho dele. Mas sendo um homem justo, o magnata aproveitou uma visita que fazia a Paris, e chamou o empregado para uma entrevista, a fim de tirar a limpo a suas impressões.
Ocorre que Bennet gostava imensamente de cães, dos quais vivia cercado. O correspondente, tomando conhecimento disso, foi se encontrar com o patrão munido de um pequeno pedaço de fígado e um pouco de erva doce metidos no bolso (vê-se que eram tempos anteriores ao uso das rações, na alimentação dos cães!).
Bennett fez com que o homem o esperasse, por uma hora, na sala de estar de seu apartamento, antes de surgir rodeado de seus cães. Esses avançaram amistosamente sobre o correspondente, sacudindo as caudas e lambendo-lhe as mãos. Bennett abriu um grande sorriso de simpatia e, em vez de demitir o empregado, deu-lhe uma semana de férias em Paris, e um aumento de salário. Tudo isso porque, segundo o modo de pensar de Bennett, um homem de quem os cães gostavam não podia ter defeitos graves!
Eu - devo confessar - já senti vontade de esganar a Dorothy, nesses nossos anos de convivência. Uma dessas vezes foi quando ela vomitou num montão de roupa, recém-lavada, que eu havia posto sobre a cômoda do quarto 'de passar'. Lembro-me de ter sentido o cheirinho do amaciante nas roupas, no momento em que a minha cabeça roçou nelas, enquanto eu as recolhia do varal. Quando vomitou, Dorothy 'escavou' no meio dos panos, de modo que a sujeira atingiu todas as peças. E é claro que isso aconteceu numa estação chuvosa, num dia em que eu, aproveitando um breve estio e com muita trabalheira, consegui, gloriosamente, que toda a roupa suja acumulada fosse lavada e secada, sob um sol débil.
A outra vez em que a Dorothy 'aprontou' de verdade, foi quando destruiu a plantação de onze-horas que eu cultivava num grande vaso, a qual me exigira semanas de esforço e tempo.
Mas há, é claro, o lado bom. Dorothy (e creio que isso acontece com todos os cães de estimação, com relação aos seus donos) já deixou mais que provado que nos ama! Quem no mundo conseguiria demonstrar tanto contentamento à nossa simples chegada? Quem demonstraria tanto pesar à nossa partida (ainda que estejamos indo apenas até o supermercado da esquina)? Ou quem se devotaria a nós, tão completamente? Por conviver mais comigo, ela é também mais apegada a mim. Isso significa estar sempre ao meu lado, mesmo que eu esteja, há horas, lendo no banheiro, antes de tomar o meu banho (e ela cochilando no tapetinho, do lado de fora da porta). E pode significar também, ficar deitada perto de mim na cozinha, altas horas da noite, quando o restante da família há muito, ressona. Isso acontece, por exemplo, quando preparo um prato que exige ações antecipadas; ou finalizo um bolo que servirei no dia seguinte, numa festa familiar qualquer. E a lealdade? Ela é leal a todos nós. E a um ponto, que é capaz de avançar contra nós mesmos, se nos vê fazer gestos ameaçadores, uns contra os outros.
Mas, do que gosto mais na Dorothy, no entanto, é da doçura que ela tem no olhar. E daquele ar de contentamento, quando estamos próximos; algo tão real, que já me fez mostrá-la ao meu marido e perguntar: "diga-me: ela está rindo ou não?". Outra coisa de que gosto muito, é vê-la correr ao nosso encontro, quando a chamamos. Nosso quintal é grande e vê-la cruzá-lo, às carreiras, uma bolinha de pelo ondulante, com as orelhas agitando-se ao vento, saltitante como um carneirinho, é uma visão enternecedora. Nesses momentos ela deixa de ser a "Dorothéa", nome com que a chamo quando ela me aborrece, e passa a ser "Dodô", a bebezinha da família!