sábado, 9 de julho de 2011

Meia Noite em Paris e a Vida Real


Fui ver recentemente o novo trabalho de Woody Allen, Meia Noite em Paris, e gostei muito. O filme é uma delícia, com a sua explícita alusão ao conto de fadas, em que sonhos se realizam à meia noite ou por volta dela. O personagem sonhador nele é Gil Pender, roteirista de Hollywood, que gostaria de viver em Paris e realizar ali uma obra relevante, começando com a conclusão do romance em que está trabalhando. Gil, sua noiva, Inez, e os pais dela se encontram de férias em Paris, e enquanto ele fantasia sobre como seria a vida ali nos anos 20, quando a cidade fervilhava de escritores e artistas, a noiva e os pais dela não querem outra coisa senão agir como turistas, visitando os points famosos e comprando móveis e objetos para o futuro lar da moça.
Então acontece de Gil ser transportado ao passado, através de um Peugeot antigo, que pára ao lado dele. Isto ocorre quando Gil se encontra sentado numas escadas na rua, onde arriara, a fim de descansar as pernas e tentar apressar um pouco a metabolização do álcool ingerido numa degustação de vinhos, em que estivera com a noiva. Os passeios solitários à noite, aliás, acontecerão muitas vezes, já que Gil se aborrece com a postura da noiva e dos sogros, que se comportam como burgueses arrogantes e tolos, sendo que a noiva ainda lhe proporciona um desprazer extra, ao se deixar envolver por um casal de amigos - que também se encontra de férias na cidade -, pois o homem, ex-professor de Inez, é um indivíduo pedante e chato, por quem, todavia, ela tivera uma paixão no passado (que ele, talvez, deseje reacender no presente).
No antigo Peugeot há sempre alguma das grandes personalidades das artes, que vivia em Paris nos anos 20, começando pelo escritor Ernest Hemingway. Estas pessoas levam Gil aos lugares que freqüentavam: bares, salões de festa e residências. Nestes locais, Gil encontra, estupefato, muitos dos artistas que posteriormente haveriam de ser consagrados como os gênios do século: Picasso, Cole Porter, T.S. Eliot, Luís Buñel, os Fitzgeralds, Gertrude Stein e outros. Claro que todos nós também somos transportados para aquele mundo mágico e cheio de vigor criativo. E ficamos imaginando quão fabulosamente interessante não teria sido uma experiência assim.
Terminado o filme, porém, não pude deixar de pensar nas vidas daqueles gênios, e foi inevitável a constatação de que muitos deles experimentaram grande quinhão de dor. Hemingway, por exemplo, começou a sofrer antes do estrelato, digamos assim, pois o pai dele se matou, quando o escritor tinha 30 anos e estava mais ou menos no início da carreira. A mãe dele, não obstante a relação que tinha com a arte, pois era professora de canto e ópera, tinha um espírito dominador e autoritário e era dada a atormentar o filho. Consta, em algumas das biografias do escritor, que a mãe chegou a lhe enviar o revólver com que o pai se matara, e ele nunca soube se ela desejava que o guardasse, como uma recordação do acontecimento trágico, ou o usasse para o mesmo fim. De qualquer modo, Hemingway viria também a cometer o suicídio, em 1961, vencido por doenças sérias e uma severa depressão. Antes disso, porém, a vida dele fora intensa e cheia de aventuras, como dá para entrever no filme. Também os Fitzgerald enfrentaram anos sombrios. O casamento deles foi instável e permeado de sofrimentos, que culminaram na esquizofrenia dela e no alcoolismo dele. Scott Fitzgerald morreu aos 44 anos, quando tentava refazer a vida longe de Zelda, que se encontrava internada num hospício (onde viria a morrer, oito anos depois, num incêndio que consumiu o lugar).
Cole Porter, provavelmente o mais charmoso dentre todos quantos foram mostrados no filme, ingressou no seu Purgatório terrestre aos 46 anos. Até então levara vida rica, venturosa e luxuosa, cercado dos mais conhecidos intelectuais da época. E então, em 1937, sofreu o acidente de cavalo que lhe quebrou as duas pernas, o obrigou a amputar uma delas, e o deixou com dores crônicas até o fim dos seus dias. Homossexual, Porter viveu vários romances com homens, apesar de ter sido casado durante 34 anos, com Linda Lee Thomas, mulher que sempre o apoiou. Quem assistiu ao filme que conta a vida dele (De Lovely, com Kevin Kline no papel principal), deve ter visto tudo isso.
T.S. Eliot tinha um distúrbio mental, como também a esposa dele. Picasso até que não sofreu, se não levarmos em conta os anos de pobreza extrema e carências variadas, do início de sua carreira. Em compensação, ainda hoje é acusado de ter infligido muitos e terríveis sofrimentos às suas mulheres.
Bem, vou parar por aqui, pois a vida também tem coisas boas e é um erro a gente se deter demais nas ruins. Todavia, não posso deixar de perguntar: não é uma pena que a vida real seja frequentemente tão complicada?